Sai do banho, passa por uns móveis velhos de um quarto que nunca mudou, abre a porta, como um ato involuntário tateia a parede a direita, a procura da luz, passa pelo espelho, vai direto ao guarda-roupa, volta ao espelho.
Percebe depois de muitos anos, o espelho. Embaçado pelas coisas que traz o vento, o espelho perdia sua utilidade, tinha alguma coisa nele que parecia implorar para refletir algo.
Passa a mão molhada como num gesto de limpeza misturado com carinho e afago. Aos poucos aparece um cabelo, uma cicatriz, sobrancelhas, olhos, nariz e uma boca (nada muito bonito, nem harmonioso, mas para o simples espelho, era belo ter que refletir algo novamente).
Seria um rosto qualquer, não fosse a tristeza expressiva.
Sou eu?
Passa a mão pelo cabelo, cicatriz, sobrancelhas, olhos, nariz e boca. Até o sinal do lado direito da boca continua o mesmo. Mas, mesmo assim, falta algo. Cabelo, cicatriz, sobrancelhas, olhos, nariz e boca, tudo como tem que ser, mas falta algo.
Resolve fazer a última conferência: passa mais uma vez a mão pelo cabelo, toca a cicatriz que adquiriu quando menina na rua e até hoje continua lá. Falta algo.
Chega a achar que o espelho tenha lhe tomado algo. Encara-o como numa disputa de olhares furiosos, o avisando que devolva senão a confusão está armada. Concentra-se mais ainda no espelho. Até que num desatino, numa revelação, percebe.
São meus olhos! São meus olhos!
Descobri! Descobri!
Faz uma coreografia boba, como se erguesse troféus no ar. Descobri! Falta a alegria que perdi há um tempo atrás e que era vista através de meus olhos. Desejou não mais ser vista. Desejou nem ser alegre novamente. Desejou que o espelho se quebrasse. Desejou não ter descoberto isso. Só desejou, desejou e desejou. E saiu da frente do espelho, calada e triste, como realmente costuma ser agora.
Iúna Gabriella Paiva